Qual é a sua?

sexta-feira, dezembro 31, 2010

A última do ano

Quando pequeno, a última colher de comida nunca era a última. Percebe-se que era no máximo a antepenúltima. A última colher não existe. Uma forma de convencer a criança a mastigar a contragosto. Uma forma de persuadir que é o fim para chegar ao fim. É uma das primeiras mentiras involuntárias dos pais, decorrente da generosidade de ajudar. A última colher deveria significar que é "para valer", mas identifica-se em seguida que não vale nada e a papinha continua insistindo em entrar. A partir desse momento, o último passa a criar o gosto de não ser o último. Entende-se o último como algo que não acontecerá. O último - na verdade - é um começo disfarçado. O último amor. Não há como declarar taxativamente o último amor, porque o desejo admira a incoerência, a contradição, o ciúme. Como já ouvi gente, depois de uma desastrada separação, afirmando que não amaria mais e está hoje no terceiro casamento. Talvez tenha sido último amor naquele dia. Não se termina nada: amizade, livro, filme, casamento. Fica inacabado, adormecido, avulso. Temos a incapacidade natural de findar qualquer coisa. Quem pensa que terminou a relação, como se terminar a relação fosse mérito de quem disse primeiro, apenas adiou seu final. Haverá uma gaveta para colocar o que não se concluiu, um armário para esconder o que não serve mais, uma garagem para o imprestável até o momento. Não conheço sucata que não atenda alguma emergência. O último é somente um início mais convicto, em voz alta. De igual modo, um minutinho é uma hora, um momento é uma eternidade. O último cigarro, por exemplo, é a ladainha do anti-social, que avisa os amigos que está parando, faz um carro de som de sua abnegação e não larga o vício. Encontra logo um problema para justificar a retomada. Num bar, a situação é a mesma. A última cerveja não será a última, a saideira se repete tantas vezes como as colheradas na boca da criança. O último é um fundo falso. Os pais replicam ao filho que é a última vez e não é a última vez. Facilmente desistem da despedida. É a última vez que levará o filho ao restaurante. É a última vez que vai à praça. É sempre a última vez e a criança entende que amanhã voltará tudo ao normal. Na hora de escutar o "último" o ideal é pensar "de novo".

domingo, dezembro 26, 2010

Com cópia em papel carbono

Identificaram os seguintes itens na memória de um homem de idade indefinida, morador solitário da Rua do Arvoredo, em letra datilografada numa Olivetti verde, com fita vermelha e preta. Uma por uma das peças e pequenos fósseis foram retirados de suas lembranças. Havia mais de cem pedras obstruindo a vesícula da memória.
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Kichute. Vinil. Creolina. Mimeógrafo. Placar. Corcel II. Carpim. Eslaque. Laquê. Bilboquê. Bambolê. Marcha no guidão. Groselha. Ki-suco. Vendedor de Mirador. Perdidos no espaço. Jeannie é um gênio. Elo Perdido. Terra de Gigantes. Daniel Boom. Figueroa. Túnel do Tempo. Fitipaldi. Pampa Safari. Escaler. 14 Bis. Secos e Molhados. Revista Manchete. Futebol cards. Bolita. Pegador de armazém. Balança de pinos. Sete belos. Funda. Sapato de bico. Boca de sino. Chacrina. Gretchen. Bolinha. Saramandaia. Irmãos Coragem. Bigode. Paulo César Pereio. Mad. Maricas. Dona Flor e seus dois maridos. Pink Floyd. Corneta do Rintintin. Lassie. Bolachas Maria. Guimba. Fralda de pano. Auxílio à lista. Dancin'Days. Discoteca. Meretriz. Sofá-cama. Beliche. Loção pós-barba. Ceasa. Herbie. Fusca. Opala. Ilha do paraíso. Love story. Nescau. Regina Duarte. Cruzeiro. Fiado. Lampião. Minancora. Babados. Mequetrefes. Grega. Abrigo Adidas. Balela. Disco. Caldo de cana. Mandiopã. Coelho Ricochete. Reunião dançante. Hanna & Barbera. Cueca virada. Bolinho de chuva. Pipoca com mel. Cuba libre. Cartilha. Caderno de caligrafia. Globo de espelhos. Supercine. Papel de parede. O céu é o limite. Jota Silvestre. Flavio Cavalcante. Escrava Isaura. Sobrancelhas raspadas. Peruca. Playmobil. Meias de lurex. Cuecão. Drive in. Polaroid. Santinhos. Corner. Pelota. Tiro de canto. Cinto para emagrecer. Pulseiras magnéticas. Magnésio. Cestas de natal. Caloi. Estação férrea. Prostíbulo. Curetagem. Sacristão. Coroinha. Felação. Arena. Venezianas. Vidro fumê. Óculos Ray Ban. Estilingue. Abluções. Chaco. Mercúrio Cromo. Panacéia. Casquinha. Amolador. Sal de frutas. Bolo inglês. Morfina.
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Mesmo lavrado em cartório, o homem precisou de um tradutor para dar sentido ao que recordava. Usava suspensório. Guardava a dentadura de alguém no copo de requeijão. O relógio da parede da cozinha não acompanhava o horário de verão, dando sinais de subversão. Uma cobiçada reprodução da Última Ceia estava fixada com durex no corredor azul. Muitos vocábulos saltavam sublinhados. Ele era um dicionário aleatório. Verbete sem sinônimo e esposa. Reduzido pela rua, se considerava perseguido pela língua, minoria nas palavras cruzadas. Suas fotos não tinham rascunhos. Não deixou herdeiros. As datas apareciam borradas. Costumes foram umedecendo no papel de presente dos cadernos e do fundo das gavetas. Era o que não voltou. Tudo o que escrevia fazia em papel carbono. Ele se dizia consumido.

sexta-feira, dezembro 24, 2010

Cartinha para o Papai Noel

Querido Papai Noel.
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Eu não acredito no senhor e, dadas as circunstâncias dos últimos anos, nem no espírito natalino eu acredito muito, mas como é moda mandar cartinha pro senhor, vou virar subversiva e vou seguir a moda.
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Esse ano foi melhor que o ano passado, fato. Em alguns aspectos. Eu não magoei tanta gente esse ano, mas quem eu magoei me fez querer arrancar meu coração fora e sair por aí o chutando. Mas, em contrapartida, fui uma boa menina. Não voltei pra faculdade, apesar de não estar mais indecisa em relação ao curso, voltei a morar sozinha, comecei uma dieta e estou seguindo-a.
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Eu falei muita coisa que não devia, fui a lugares que não devia e fiz coisas que não devia, mas todo mundo tem o direito de cometer erros, né?! Eu juro que em 2010 só cometi erros novos, não repeti os antigos.
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Por isso, senhor Natalino, eu gostaria muito de ganhar a mega-sena de final de ano. Brinks Noel.
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Eu quero um pouco mais de paciência, que o senhor exorcize a preguiça do meu corpo, que não me deixe sucumbir à gula e à luxúria (essa última pode deixar de lado, se já estiver pedindo demais), e que eu fique só um pouco avarenta, porque eu gastei demais nos últimos tempos.
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É isso, Noel. Eu sei que não vai adiantar merda nenhuma, mas o pedido está feito.
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Beijos!
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quinta-feira, dezembro 23, 2010

Esse verão

O poeta espanhol Góngora escreveu seus sonetos e fábulas sob o inferno implacável de 40º. Sua poesia pode ser comparada à insolação. Profusão de imagens e febre alta da linguagem. "Compassiva erva, encomendada:/ sorva, enrugada se do feno em meio;/ a pera, de que foi cuna dourada/ a ruiva palha e - pálida tutora -/ a nega avara e, larga, de ouro a cora." Entendeste? É muita volta na quadra. Parece que o autor suspende a conclusão de um verso e somente o retoma três anos depois. O calor colabora para o delírio. Difícil se expressar na asfixia, com o pescoço prensado pela luz. Perde-se a vontade de falar. Fica-se inanimado, uma pedra carregando pedras. O vento que passa não alivia o impacto da claridade. Sádico, surge para ofender com seu bafo de bêbado. O suor assume a incidência de álcool. Deixa-se o banho e já estamos prontos para um outro. Sem praia, a estação é um beco sem saída. O tempo custa a passar. A noite queima as pilhas das estrelas. Tudo é esperança de chuva. Minha mãe me telefona todo dia para dizer que a chuva não veio. O calor transforma os sábios em loucos, os equilibrados em histéricos, a fé em resignação. A ardência dos olhos faz a gente andar de boca aberta. Caminha-se numa esteira de idéias fixas. A barba e os pêlos crescem rápido. A pele retorna à adolescência, com brotoejas, manchas e espinhas. As lâmpadas queimam em sincronia. Descobre-se que o ar-condicionado precisa de limpeza. As crianças emagrecem o rosto. Os sons sobem de altura. É a estação em que se define verdadeiramente quantos cães existem no bairro. Conta-se os cachorros para não dormir. O barulho da piscina está no vizinho. Ninguém consegue terminar uma conversa. A respiração se enfraquece em suspiro. Bocejar é uma prática extenuante para se alcançar nesta época. O carro é uma sauna mista. Não adianta fechar a janela. De carona, leva-se a fumaça irritante do sol. Os casais cansam de brigar. A briga fica reservada para as moscas na cozinha e os mosquitos no quarto.

quarta-feira, dezembro 22, 2010

Ao menos uma vez...

Não acredito em quem confia demasiado em si. Quem nunca extravia a conversa, o jeito da vida, o sentido. Quem nunca se duvida antes de rezar. Quem nunca reza para se distanciar. Quem nunca desistiu de procurar termos no dicionário. Quem nunca se endivida antes do salário. Quem nunca perdeu uma amizade por uma palavra a mais, um amor por uma palavra a menos, uma leitura pela falta de insistência. Não perdeu o emprego, não perdeu um parente, não perdeu a paternidade de si mesmo. Não acredito em quem fala dos outros com convicção, com domínio e técnica, com destreza de faca e agulha. Não acredito em quem não se critica, não se perdoa, não volta atrás. Não acredito em que se julga maior do que a própria vida e se submete às comparações para subir a estima. Não acredito em quem não consulta a meteorologia para apenas constatar que não choveu na noite seguinte. Não acredito em quem enxerga a literatura como uma religião, os livros como mais importantes do que os filhos, os autores como deuses inquestionáveis. Não acredito em quem não se encolheu ferido, derrotado, acuado, mínimo. Não acredito em quem não tem fé para atravessar o rio a nado. Não acredito em quem não considera a possibilidade de fracasso. Não acredito em quem não lê os obituários na velhice. Não acredito em quem não revê suas fotos para se espalhar. Não acredito em quem capricha na letra. Não acredito em quem não modifica sua infância ao avançar. Não acredito em quem não esquece a data ao preencher o cheque. Não acredito em quem ultrapassa o sinal fechado sem medo. Não acredito que o submisso no trabalho não é estourado em família e que o estourado no trabalho não é manso em casa. Não acredito em quem não recusa ao menos três frutas antes de escolher. Não acredito nas verdades que não são mastigadas em silêncio, na arrogância que fala com a boca cheia. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de trabalho. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de família. Não acredito em quem não passa numa praça ensolarada sem querer sentar. Não acredito em quem não vacila, não se desespera, não prensa o pulmão contra a parede de um relógio. Não acredito em quem professa ensinamentos com indiferença. Não acredito em quem mendiga culpados para sua raiva. Não acredito em quem usa chapéus dentro de casa. Não acredito em quem não foi deserdado em algum momento e fez das ruínas seu começo e seu final. Não acredito na literatura que não seja desconfiança. Não acredito que o desejo possa se repetir. Não acredito em quem não tem receio da morte. Não acredito, confesso que não acredito muitas vezes por dia.

sexta-feira, dezembro 17, 2010

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"Wikileaks revela segredos de festas de fim de ano."
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Assustou, hein?!
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segunda-feira, dezembro 06, 2010

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Tenho a impressão que a Simone passa onze meses do ano trancada numa solitária e sai em dezembro cantando música de natal.
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=S
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